O que nós esperamos da COP27
16 de novembro de 2022 às 16:43h
Sharm El-Sheikh – novembro de 2022
A COP27 (27ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas) começa no domingo (06) em Sharm El-Sheikh, no Egito, sob o signo de múltiplas crises. No ano de 2022, eventos climáticos extremos mais uma vez se sucederam em ritmo acelerado, desde as enchentes em Petrópolis no início do ano às enchentes mortíferas no Paquistão, com 33 milhões de pessoas deslocadas, passando por ondas de calor na Ásia e na Europa e a seca no Chifre da África, ao sul do local da COP, que já deslocou 1,5 milhão de pessoas e traz de volta o espectro da fome à Somália. Ao mesmo tempo, a recuperação da economia mundial após a pior fase da Covid-19 fez as emissões de gases de efeito estufa subirem a níveis provavelmente nunca vistos – apenas as emissões por uso de energia em 2021, último ano para o qual há dados, chegaram a 52,8 bilhões de toneladas e podem ter batido o recorde histórico de 20191 . E aí houve a guerra. A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro, causou um ressurgimento dos combustíveis fósseis, com o aumento da produção de petróleo em vários países e o retorno do carvão mineral em nações europeias como a Alemanha. Cereja do bolo, os EUA, maior emissor histórico do planeta, começarão a COP com eleições para o Congresso, nas quais o Partido Democrata, do presidente Joe Biden, está ameaçado de perder o controle da Câmara para os republicanos, ligados a Donald Trump e ao negacionismo climático.
Nesse contexto climático e geopolítico ocorre a “COP da Implementação”, primeira conferência do clima após o fechamento do livro de regras do Acordo de Paris, em 2021. Sharm El-Sheikh, no continente africano, deveria ser o local onde os países enfim se uniriam para dar substância ao acordo firmado na COP26, em Glasgow, para manter viva a meta de limitar o aquecimento global a 1,5oC. Para isso, é preciso reconstruir a confiança entre os países, perdida ao longo de um ano de guerra, no qual a cooperação multilateral declinou.
A COP27 precisa avançar em agendas cruciais deixadas em aberto em Glasgow, como a do financiamento climático, a das perdas e danos e a da aceleração da ambição das metas de corte de emissão dos países. O mundo tem apenas 96 meses para cortar emissões em 43% e dar uma chance ao 1,5oC. Isso não ocorrerá sem um aumento disruptivo da ambição climática dos países do G20 (que respondem por 75% das emissões do mundo) até 2030: segundo a própria Convenção do Clima, a soma das NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), inclusive as 24 novas apresentadas no último ano, no máximo farão o mundo chegar em 2030 com os mesmos níveis de emissão de 2019 – de acordo com o Pnuma, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, é uma redução de menos de 1% nas emissões projetadas no ano passado. A concentração de gases de efeito estufa na atmosfera cresceu em 2021 mais rápido do que a média da última década3 – que viu o maior crescimento nas emissões de toda a história humana. Tudo somado, estamos, na melhor das hipóteses, no rumo de um aquecimento de 2,4oC.
Esses três temas críticos (financiamento, perdas e danos e mitigação) devem dominar as discussões em Sharm El-Sheikh, com potencial de impasse e implosão das conversas. No tema de finanças, os países ricos terão dificuldade de explicar por que ainda não cumpriram o compromisso de disponibilizar US$ 100 bilhões por ano para os países em desenvolvimento a partir de 2020. Terão também de sinalizar o que estão dispostos a botar na mesa a partir de 2025, quando as metas de financiamento terão de ser revistas.
Sem que esse bode saia da sala, os países em desenvolvimento têm pouco estímulo para cooperar no chamado Mitigation Work Programme, um “acelerador de ambição” climática lançado em Glasgow. Algumas nações emergentes chegam a acusar o programa de ser uma tentativa de renegociação do Acordo de Paris.
Por fim, tanto emergentes quanto países pobres usarão a COP africana para pressionar pelo avanço em perdas e danos, uma agenda maldita para os países ricos. Trata-se de maneiras de financiar danos climáticos aos quais já não cabe adaptação, especialmente nos LDCs (países menos desenvolvidos). As nações ricas não gostam do tema: insistem em tratá-lo dentro da agenda de adaptação, mas são assuntos distintos.
Além dos três assuntos candentes, a COP27 também precisa entregar decisões importantes sobre adaptação às mudanças do clima, já que a África é uma das principais regiões afetadas. É preciso avançar na chamada Meta Global de Adaptação e incluir na agenda um item para acompanhar a promessa de destinar 50% do financiamento climático global à adaptação.
Uma das poucas injeções de ânimo na COP27 vem do Brasil. Depois de quatro anos entre os maiores párias climáticos do planeta, o país enfim encerrou o governo Bolsonaro e elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu fazer do clima peça central de sua política externa e acenou com o desmatamento zero na Amazônia. Lula deverá ir à COP com duas de suas principais auxiliares, Marina Silva e Simone Tebet, e anunciará em Sharm El-Sheikh o nome do(a) ministro(a) do Meio Ambiente. O reengajamento do quinto maior emissor do mundo na agenda dá impulso político à conferência.
O próprio Brasil, porém, chega ao Egito com seu quinhão de más notícias. Legado do presidente que sai, as emissões de gases de efeito estufa cresceram em 2021 pelo quarto ano seguido e atingiram 2,4 bilhões de toneladas brutas, na maior alta desde 2003 (12%). O desmatamento está fora de controle e quase certamente ficará acima dos 10.000 quilômetros quadrados em 2022. Haverá também uma profusão de Brasis representados na COP: o governo atual, deslegitimado pela comunidade internacional, com um pavilhão de 300 metros quadrados, um dos maiores da COP; os governadores da Amazônia, na expectativa de captar recursos para seus Estados, com um pavilhão separado do oficial – o regime convidou os Estados para participar do Espaço Brasil, mas não queria que eles falassem de florestas; o governo eleito, com legitimidade, mas ainda sem poder; e a sociedade civil, representada no Brazil Climate Action Hub.
O QUE SHARM EL-SHEIKH PRECISA ENTREGAR
O Observatório do Clima, alinhado com a Climate Action Network, espera que a COP27 entregue progresso real nos seguintes aspectos: §
1 – Ambição
● A COP27 precisa de uma decisão robusta que alinhe as metas de corte de emissões de gases de efeito estufa (NDCs) com o objetivo do Acordo de Paris, reflita as conclusões mais recentes do IPCC e dialogue com o mais recente Relatório-Síntese das NDCs. A decisão da COP precisa lembrar aos países que as NDCs sucessivas precisam progredir na ambição (diferentemente do que fizeram, por exemplo, Brasil e México), refletir a ambição mais alta possível e que elas podem ser atualizadas a qualquer tempo.
● É preciso atacar o chamado “gap de ambição”, a diferença entre as metas postas na mesa por meio das NDCs e o corte de emissões necessário para que a humanidade tenha chance de manter 1,5oC ao alcance. Para isso, é necessário definir e entregar um MWP (Mitigation Work Program, ou Programa de Trabalho em Mitigação) justo, ambicioso e equitativo. Também é necessário expandir as promessas de NDCs mais ambiciosas e estratégias de longo prazo para zerar emissões líquidas feitas pelos chefes de Estado e governo em Glasgow.
● O MWP precisa ampliar a ambição dos países nesta década. É preciso acordar um ciclo anual de atividades do MWP até 2030, criando espaços para o fortalecimento de metas setoriais, como a eliminação de combustíveis fósseis na geração de eletricidade ou a redução das emissões de metano. O MWP também precisa informar mesasredondas ministeriais anuais sobre aumento de ambição.
● A COP também precisa produzir uma decisão sobre como responder ao progresso inadequado na ambição das metas de mitigação, tanto nas NDCs quanto nas estratégias de longo prazo.
2 – Financiamento climático
Os países ricos jamais cumpriram a meta, ela própria injusta e insuficiente, de aportar US$ 100 bilhões por ano em financiamento climático para os países em desenvolvimento. Isso tem minado a confiança no processo multilateral e pode fazer a COP27 fracassar. No tema crucial das finanças climáticas, Sharm El-Sheikh precisa:
● Que os países ricos compensem o descumprimento da promessa de US$ 100 bilhões por ano em 2020 entregando pelo menos US$ 600 bilhões para o período 2020-2025, com 50% do recurso indo para adaptação.
● Que os países ricos demonstrem mais transparência na prestação de contas sobre o recurso e se comprometam com novos aportes de financiamento.
● Que as deliberações sobre a nova Meta Coletiva Quantificada (NCQG) de finanças, que deve valer a partir de 2025, mostrem progresso. Na COP27 acontecerá a primeira reunião ministerial sobre o NCQG, e ela precisa aumentar a atenção política para o tema e resultar em uma agenda robusta para as deliberações em 2023. A COP precisa também fornecer orientações sobre como o NCQG pode servir à transformação econômica rumo a 1,5oC.
● A qualidade do financiamento climático também precisa melhorar. A NCGQ precisa ser recurso novo e adicional, incluir mitigação, adaptação e perdas e danos, priorizar doações a empréstimos e incluir critérios de justiça climática, priorizando acesso direto para pessoas e comunidades vulneráveis, como povos indígenas e mulheres. Ele também precisa ser ajustável, podendo ser revisado para cima de acordo com as recomendações da ciência.
3 – Perdas e danos
O tema de perdas e danos (Loss and Damage, ou L&D, na sigla em inglês) diz respeito diretamente à justiça climática, e precisa ser financiado pelas nações desenvolvidas, de acordo com os princípios de solidariedade internacional e responsabilidade histórica. O financiamento para perdas e danos deve ser público e a fundo perdido. A Climate Action Network, da qual o OC é membro, demanda que Sharm El-Sheikh avance nos seguintes aspectos:
● Incluir financiamento de L&D na agenda da COP e da CMA (reunião das Partes do Acordo de Paris) como um item próprio dentro do item “matérias relativas a financiamento”.
● Produzir uma decisão sobre o estabelecimento de um mecanismo (facility) para financiamento de perdas e danos.
● A COP deveria solicitar ao Pnuma que produza um relatório bienal sobre o hiato existente de financiamento de perdas e danos.
● Tornar operacional e institucional, por meio do estabelecimento de seu conselho consultivo, a Rede de Santiago para Perdas e Danos (SNLD), o corpo técnico para fornecer assistência para comunidades e pessoas impactadas e para auxiliar os países menos desenvolvidos a lidar com perdas e danos do clima.
4 – Adaptação
A COP27 precisa avançar na operacionalização da Meta Global de Adaptação (Global Goal on Adaptation, ou GGA), um compromisso que torne as ações neste eixo do combate à mudança do clima tão quantificável e transparente quanto a meta de mitigação. Há passos importantes a dar no Egito para isso, entre eles:
● Fazer andar o GlaSS (Glasgow-Sharm El-Sheikh Program), o programa para definir o GGA, entregando um plano de trabalho para sua operacionalização na COP28.
● Ter um item de agenda permanente sobre a GGA para garantir um resultado significativo, que impulsione a adaptação transformadora.
● É preciso duplicar o financiamento para adaptação. É preciso que a COP e a CMA incluam um item de agenda sobre isso e sobre a implementação do compromisso com a destinação de 50% dos recursos de financiamento climático para adaptação. É preciso também estabelecer um plano de ação claro para isso, demonstrando que fundos disponibilizados para adaptação nos países pobres sigam um trilho específico e possam ser rastreados e quantificados.
5 – Artigo 6
Após finalizadas as regras gerais do Artigo 6 em Glasgow, os negociadores agora se voltam para aspectos técnicos de funcionamento dos seus instrumentos (conhecidos como artigo 6.2, que trata de comércio de emissões entre países, e 6.4, que cria o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável, de comércio de emissões por projetos). Na COP27 espera-se avanços nessas regras de funcionamento garantindo a integridade ambiental do mecanismo acima de tudo:
● Com relação ao artigo 6.2, questões técnicas como a operacionalização de ajustes correspondentes em NDCs tão diversas (plurianuais X anuais) garantindo que não haja o risco de dupla contagem – o que já está vedado nas regras gerais do instrumento – são de extrema importância.
● Já no artigo 6.4, o Órgão Supervisor (Supervisory Body) deve desenvolver recomendações sobre requisitos metodológicos baseadas em um princípio: Somente tipos de metodologia/atividade que sejam compatíveis com um caminho de 1,5°C em nível global e incorporando a melhor ciência disponível devem ser considerados. É necessária também uma definição correta e adequada do termo “remoção de dióxido de carbono”.
● O Órgão Supervisor deve implementar salvaguardas sociais e ambientais, não limitadas, mas em particular para os direitos dos povos indígenas, estabelecendo um mecanismo de reclamação (grievance mechanism) acessível e baseado em direitos, governado por um órgão independente que não seja o órgão supervisor.
● Quanto à operacionalização do OMGE (overall mitigation in global emissions, ou mitigação líquida das emissões globais), é necessário que os ajustes correspondentes se apliquem ao mínimo de 2% das unidades encaminhadas para a conta de cancelamento. Se essas unidades não forem ajustadas, os resultados de mitigação subjacentes ainda serão refletidos no inventário da parte anfitriã e, portanto, o OMGE não ocorrerá. As chamadas unidades “não autorizadas” não devem ser excluídas dessa exigência: uma parcela mínima de 2% de unidades não autorizadas deve ser encaminhada para a conta de cancelamento e também deve ser ajustada, sem nenhuma exceção.
● Apesar de permitido pelo art. 6.4, recomenda-se às partes que não utilizem os CERs (reduções de emissões certificadas pelo MDL) para suas NDCs. Esse foi um pleito específico do Brasil, mas há estudos mostrando que a maioria dos CERs são de baixa qualidade (improvável que sejam adicionais), e seu uso para as NDCs pode na verdade levar a um aumento nas emissões em geral.
O CONTEXTO BRASILEIRO: PATO MANCO X “GOVERNO CLIMÁTICO”
O Brasil chega a Sharm El-Sheikh com dois governos. Um ainda no poder, mas ilegítimo naquele fórum, e outro cercado de expectativas, com muitas promessas, mas sem caneta. Entre ambos está uma equipe de negociadores que não pode nem descumprir instruções do governo atual, nem avançar em debates importantes para o governo que ainda tomará posse.
Embora o Brasil já tenha tido em 2002 uma transição de governo durante uma COP, esta é a primeira vez que isso acontece entre governos com orientações diametralmente opostas na agenda de clima. A tendência é que a diplomacia brasileira tenha uma atuação discreta na COP27.
O regime Bolsonaro, representado pelo ministro Joaquim Leite (Meio Ambiente), tentará tirar o foco da questão de uso da terra, utilizando o Espaço Brasil para mascatear energias renováveis num pavilhão que será o maior do Brasil em todas as COPs, mas que tende a ficar ainda mais esvaziado que o de Glasgow. Não é improvável que repita o que fez na Escócia no ano passado: esconder os dados de desmatamento de 2022, que já foram calculados pelo Inpe.
Todos os olhos do mundo estarão voltados para o governo de transição. Ainda não está claro qual será o momento de fala de Lula na COP, provavelmente na segunda semana, mas a expectativa é para o anúncio do ministro do Meio Ambiente (há o precedente histórico do anúncio de Marina Silva em 2002 numa visita a Nova York e Washington logo após a eleição), possivelmente a oferta do Brasil para sediar a COP de 2025, e ao menos uma sinalização sobre o ajuste da ambição da NDC. Lula quer usar a COP para marcar o retorno do Brasil à ribalta internacional, retomando acordos comerciais paralisados e investimentos. Sua ida a Sharm El-Sheikh pode ajudar a dar impulso político a uma conferência que se anuncia morna.
O QUE O NOVO GOVERNO BRASILEIRO PRECISA SINALIZAR
• Que se compromete a submeter uma nova NDC sem pedaladas, compatível com 1,5oC e com a melhor ciência;
• A reafirmação do compromisso com o desmatamento zero, conforme o presidente já havia prometido em seu discurso de vitória no dia 30;.
• A reativação do PPCDAm (Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia) e do PPCerrado (Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado), com a restituição das competências e condições institucionais dos órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental (Ibama e ICMBio);
• Que entregará, juntamente com a nova NDC, um plano de implementação crível das metas para 2025 e 2030, algo que deveria ter sido feito até 2020;
• Que se compromete a entregar, em 2023, uma Estratégia de Longo Prazo que dê substância, com metas, indicadores e previsão de financiamento, à promessa do Brasil de neutralidade em 2050;
• Que está comprometido com a desintrusão das terras indígenas, a retomada das demarcações, a titulação de territórios quilombolas e criação de unidades de conservação;
• Que vai destravar o Fundo Amazônia no primeiro mês de governo;
• Que apoia ativamente o pleito dos países em desenvolvimento de um mecanismo de financiamento em Perdas e Danos;
• Que concorde e apoie a criação de um MWP robusto, com previsão até o fim da década, voltado para a aceleração da implementação das atuais metas, mas também para o avanço coletivo da ambição climática dos países a fim de manter a meta de 1.5oC ao alcance.
• Que atuará junto ao Congresso para retirar de pauta os projetos de lei do pacote da destruição.
Por Observatório do Clima